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Post: Formação alcoólica

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Entre homens surge um orgulho bastante específico ao se tornar capaz de ingerir quantidades obscenas de álcool.

formação alcóolica é, ainda que se negue, um dos tijolos da identidade masculina.

Não sabemos quais os maiores medos de nossos amigos, mas com absoluta certeza sabemos quem é o mais resistente da turma, quem mais vomita, quem chora, quem fica agressivo, quem pega todas, quem mente, quem conta piadas ruins e quem brocha quando bebe.

Essa obsessão começa cedo.

Em uma cultura na qual vivemos domesticados em cadeiras de escola, cubículos da empresa, salas de cinema, salas de teatro, cadeiras de restaurantes, assentos de avião, pacotes turísticos e sofás, o álcool parece ser o elixir da felicidade.

O primeiro gole é um momento quase ritual entre adolescentes. Talvez venha do próprio pai, que vai dar risada da careta do filho inexperiente. O filho não precisa receber instruções, ele apenas observa que beber é coisa importante para os adultos. Se faz para relaxar ao final de um dia cansativo, para contar piadas no almoço de domingo com a família, em festas quando se quer paquerar.

Ficar desinibido, mais agressivo, eufórico e reativo parece ser um colateral positivo, uma expressão de virilidade.

O recado vem claro: beber é bom. É coisa de homem.

Os primeiros porres quase sempre chegam antes dos dezoito.

As namoradas reclamam dos namorados beberrões, mas muitas vezes rejeitam e fazem piadas com os que não bebem, chamados de “frescos”.

Escutar que você “bebe como uma moça” é ofensa grave.

“Não aguenta, bebe leite!” é a provocação que todo homem escuta centenas de vezes ao longo de sua vida. Afinal, “se bebe pra ficar ruim, se fosse pra ficar bom tomava remédio”.

Batemos palma e repetimos as histórias de porres, nossas e dos amigos, incontáveis vezes.

Ser um homem adulto e não beber soa quase impossível. Ser um homem adulto e não beber até seu limite é coisa de “fraco”.

Essa realidade silenciosa aceita por todos contrasta com as mais de 50 mil mortes anuais relacionadas a acidentes de carro com álcool.

Sabe onde morria gente na mesma velocidade? Na Guerra do Vietnã.

Não aguentamos mais lidar com tanta pressão e culpa em nosso dia-a-dia, não à toa bebemos como retardados sempre que surge a chance, queremos esquecer do mundo. Campanhas baseadas na culpa, sozinhas, não vão funcionar.

O ponto é tornarmos nossa relação com a bebida mais lúcida e menos autodestrutiva.

É parar de glorificar a bebedeira sem limites. É sair de táxi quando for beber. É não fazer piada com os amigos que bebem pouco ou nada. É conversar abertamente sobre o quão dependentes nos tornarmos de latinhas e copos com gelo numa sexta à noite.

Eu demorei quase quinze anos para me permitir comprar garrafas d’água entre drinks e cervejas em festas. Por medo de ser percebido, e me perceber, como menos homem.

Óbvio que não racionalizava isso, apenas pensava “ah, não preciso de água, aguento um pouco mais de boa”. Na real, eu nem pensava, só seguia o hábito de beber como sempre bebi. Era parte de minha formação alcoólica. E talvez faça parte da sua também.

Romper esse padrão é osso duríssimo de roer.

Por isso fiquei admirado quando, semana passada, um grupo de amigos meus, espalhados em diferentes cidades do Brasil, se encontraram numa conferência via Google Hangout, num sábado de manhã, para conversar sobre experiências relacionadas a abstinência – sendo a abstinência de álcool a principal delas.

O quão raro é uma conversa como essa surgir entre homens e o quão fácil seria taxar esse papo como frescura e perda de tempo?

Eu gosto de álcool. Ontem saí e tomei mojitos, caipirinha e cerveja. Comprei chocolate e água pra cortar um pouco do efeito. Dei risada pensando em como estou bem menos resistente agora que tenho bebido com menos frequência e intensidade.

Soa bobo, mas para mim não é.

Me reeducar alcoolicamente tem sido um dos processos mais lentos e penosos de toda minha vida. Primeiro porque meus hábitos estão arraigados de um modo que apenas se dar conta deles demora, e muito. Segundo, porque como não tenho uma doença ou problema sério de comportamento relacionado a álcool, sempre parecia pouco importante mudar essa relação.

É como o sujeito com mil insatisfações crônicas e dramas emocionais, que tornam sua vida cotidiana um pequeno inferno que aprendeu a suportar, e acredita não precisar de psicólogo ou explorar seu mundo interno porque ainda não teve um surto ou crise.

Pensamento masculino típico: só cuidar de si quando a tragédia bate na porta.

E o terceiro motivo que dificulta mudar a minha (e a nossa) relação com o álcool é a falta de amigos próximos engajados em processo similar. Chega a ser vergonhoso como homens crescidos e supostamente independentes dependem de validação externa para mudar. Se dizem durões, mas por dentro da casca, têm pânico de ter a virilidade em xeque.

A quem vier com papo de que você agora está todo politicamente correto, diga que não, que contrariar toda uma cultura que estimula homens a beberem como animais, em um país com 5.8 milhões de alcoólatras, no qual pessoas se matam bêbadas no trânsito todos os dias, sem falar nas brigas, estupros, abusos e violências em lares, festas, bares, becos e estádios, é, na bem da verdade, subversivo.

No seu próximo encontro com a bebida, seja homem o suficiente pra peitar essa luta.

Trecho de texto de autoria de Guilherme Nascimento Valadares no site Papo de Homem.

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